sexta-feira, setembro 07, 2012

Sonhos mais esquisitos…


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Atirou-se resolutamente ao rio. Nunca nadara nem sabia sequer o verdadeiro significado de nadar. Mas já o vira fazer a outras espécies e concluiu que atirar-se ao rio e nadar seria a única forma de chegar ao navio ancorado a poucas centenas de metros do cais. Trapalhão, conseguiu chegar à corrente da âncora e aí, já sem qualquer dificuldade, dada a sua símia condição, trepou a corrente, ágil e lampeiro. Chegou ao convés e hesitou por não estar exactamente certo do destino do navio. Mas uma voz cava, vinda sem ele perceber donde, lhe disse, num linguajar que ele surpreendentemente entendeu, que aquele era o navio certo.

Durante dez dias percebeu que o navio se fizera ao mar e durante esses dias, escondeu-se a um canto do porão para dormir e alimentava-se durante o dia de castanhas e bacalhau, acamado em fardos, certamente mercadorias de exportação para o destino e que, providencialmente, lhe mitigaram a fome. De algumas torneiras do porão do navio, também jorrava água que ele percebera ser para lavagens e pôde derrotar a sede.

À chegada ao destino, escapuliu-se do navio sem dificuldade e desta vez nem precisou de nadar, tão acostado estava o navio ao cais. Dissimulando-se o mais possível entre veículos e pessoas indiferentes à sua presença, o macaco (pois de um macaco se tratava) cruzou o porto, os armazéns e fez-se à estrada. Percebeu, com agrado, o calor do ar que respirava, o que lhe parecia fazer sentido com a sua condição natural de espécie dos trópicos e caminhou ao longo dela, indiferente ao tráfego confuso mas que lhe dedicava a mesma indiferença. Durante alguns dias, vagueou por estradas, auto-estradas, pontes, viadutos, até decidir a embrenhar-se na vegetação que se lhe deparava e com a qual ele não contava. Cruzou rios, ribeiros e regatos e ia comendo frutos, sobretudo amoras que, talvez fosse o tempo delas, se lhe ofereciam nas frondosas e verdejantes árvores à sua passagem e que ele ia transpondo, ramo a ramo, galho a galho, copa a copa até deparar com um grupo de pessoas que, divertidas, pareciam comemorar qualquer coisa, já que comiam e bebiam e riam e cirandavam por uma espécie de pequena mata que lhe parecia um pequeno parque. Aí reparou na existência de uns macaquinhos irrequietos, pequeninas criaturas saltitando e assustando as avezinhas que esvoaçavam entre eles, sem se dar ao trabalho de ter medo e fugirem-lhes. Curiosamente, pareceu que podia entender os macaquinhos, muito mais pequenos que ele, mas falando uma língua igualmente símia, ainda que com uma entoação diferente a que ele, sem perceber bem porquê, achou graça. Mas ele sabia que rir estava destinado apenas aos humanos e, por isso, limitou-se a introverter o divertimento que lhe causava o estranho linguajar daquelas minúsculas e macacóides criaturas.

Sentou-se num galho, observando os pássaros, os macaquinhos, as borboletas e as avezinhas e, no chão, as tais pessoas. Reparou numa delas e, sem saber porquê, fixou-se mais nela. Não entendia o porquê, apenas sentia uma força estranha que o mantinha fixo olhando para essa pessoa até que, espantado, incrédulo e algo perturbado, reparou que essa pessoa tão depressa era pessoa como gansa. E, quando gansa, lhe sorria. Ágil, garbosa e envergando um lenço ao pescoço, só Deus sabendo o porquê. Gripe? Amigdalite? Ou simplesmente o ar garboso de ser? Coisa estranha, porque gansos, tal como macacos, não sorriem. Qualquer coisa lhe dizia que ela, essa pessoa e gansa, era a única que o conseguia ver, já que todos os outros relanceavam a vista pelas árvores do parque e não davam nota, sequer, de reparar nele. O tempo passou e o macaco, o grande, o da viagem, manteve-se calmo, sereno e confortado, olhando a palmípede humana que não se cansava de olhar para ele discretamente e sorrir. Sem perceber bem o que se estava a passar, e meio aturdido mas com uma sensação indizível de bem-estar e fruição, recostou-se um pouco melhor no galho e manteve-se olhando sempre para a gansa sorridente e que continuava a sorrir-lhe e, num momento muito breve, chegou mesmo a acenar-lhe e a murmurar qualquer coisa que ele não conseguiu entender.


Ele não percebeu quando, mas achou que devia ter adormecido. Porque acordou algum tempo depois no seu habitat original. Olhou em redor e não viu macaquinhos, nem borboletas, nem aves e nem amoras para comer. Muito menos a gansa, bem direita e de lenço ao pescoço. Via apenas, confuso e estremunhado, uma porção de mar em frente, batido pelo sol do fim de tarde e ouvia as vozes de passeantes de fim-de-semana e percebeu então que adormecera olhando o mar. Mais, olhou para o corpo e não viu quaisquer vestígios do macaco que sentira ter sido durante aquilo que, naturalmente, só poderia ter sido um sonho. Um sonho estranho e não mais que um sonho. Era agora um homem como os outros que passavam por ele.

E foi para casa, pensando no mistério do que nos irá pelo subconsciente para termos sonhos esquisitos como aquele. Já perto de casa, cruzou-se com uma pessoa conhecida que lhe disse boa tarde. Ele correspondeu mas…em vez de falar, grasnou. Assustado, correu para casa e foi tomar um duche.

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1 Comments:

At 10:26 da manhã, Anonymous Anónimo disse...

...Eles não sabem que sonho
É vinho, é espumadamente:)*, é fermento
Bichinho alacre e sedento
De focinho pontiagudo
Em perpétuo movimento...
...Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E que sempre que o homem sonha
O mundo pula e avança...
*******

 

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