domingo, dezembro 14, 2008

O homem do talho


Senhor José, os bifes são tenrinhos?
São porreiros, pá!

[2828]


Ontem, um impulso estranho levou-me ao talho. Eu tinha uma ideia dos talhos consistente com um espaço cheio de meias-carcaças de animais, penduradas por um gancho de ferro das quais o homem do talho ia cortando umas peças que depois subdividia num balcão de madeira surrado de sangue e gretado por mil golpes de cutelo.

O senhor Luís (a minha recordação vai a esse ponto do “homem do talho” da minha infância) era um homem feio, careca e semiobeso que ia falando enquanto cortava as peças de carne que as clientes (só me lembro de ver mulheres no talho…) lhe iam pedindo, não sem lhe perguntarem primeiro “se os bifes eram tenrinhos”, ou dizerem que era “só um bocadinho para assar”. Já nessa altura a minha índole curiosa me espicaçava no sentido de ver a primeira vez em que o senhor Luís diria a uma cliente “não, D. Libânia, não compre os bifes que estão cheios de nervo” ou, “não leve as costeletas que o porco era magro e é só osso" (faltou referir que entre as meias-carcaças, havia quase sempre, também, uma cabeça inteira de porco).

E por entre a algaraviada do Sr. Luís e das perguntas das clientes, a actividade do talhante continuava e as mulheres seguiam de volta a casa sobraçando um punhado de bifes tenrinhos, carne para coser com pouca gordura ou umas costeletas que eram um regalo com pouco osso, satisfeitas por haver um senhor Luís que lhes garantia carne de qualidade. Enquanto esperavam, muitas delas conversavam. Mulheres esperando por qualquer coisa, inevitavelmente tagarelam, e os temas espraiavam-se pela vida que estava muito cara, pelas doenças que apoquentavam a família, a D. Irene que, sabia-se, andava a dormir com o senhor Silva, uma pouca vergonha lá no bairro, ou o senhor Freitas que, imagine-se, agora até já tinha dinheiro para comprar um carro. Um quadro, simples, português suave, aquele que me ficou de algumas vezes que fui ao talho em pequenino.

Desde aí, sinceramente que não me ocorre ter ido de novo ao talho. Por isto ou por aquilo, nunca tal voltou a acontecer e mesmo das vezes em que circunstancialmente comprei carne, apercebi-me que o acto se fazia através da retirada de travessinhas higiénicas e práticas, devidamente embrulhadas em celofane e um pequeno rótulo a dizer-nos o que acabáramos de comprar.

Até ontem. Como disse, fui a um talho. Ao olhar para um grelhador pequeno de cozinha que me ofereceram, senti uma pulsão estranha de grelhar um bife. Mais do que propriamente comê-lo. E, assim, fui ao talho. O senhor Luís não estava lá, mas estava um sujeito magro, cabelos grisalhos e, embora feio como o senhor Luís, mantinha a pose do homem de meia-idade que acha que ainda ali está para as curvas. O balcão de madeira já não é de madeira nem há meias-carcaças penduradas. Tudo o mais, está exactamente na mesma. Os mesmos cutelos, o mesmo ritual de afiar as facas num limatão grosso antes de se talhar a peça de carne e, surpresa, exactamente as mesmas perguntas que eu ouvira há muitos anos sobre a qualidade da carne. Se “os bifes eram tenrinhos” e se a carne para cozer (não sei bem o que é carne para cozer, presumo que seja uma carne… que se coze, não há outra explicação) tinha pouca gordura. A conversa também não divergiu muito da que eu conhecia. A diferença é que já não é em tipo “português suave” dos meus tempos de criança. Do que ouvi, a ideia generalizada de que estamos rodeados de políticos malandros, corruptos, ricos e incompetentes é permanente. Tudo dito com raiva mal contida e "isto" vai acabar mal, um dia destes vai ser como na Grécia. E que é bem feito para eles aprenderem. E já agora, que Nossa Senhora nos guarde de levar com uma bala de ricochete, como a “criança” da Grécia.

Como só fui esta vez ao talho, não sei se os temas de conversa são recorrentes, mas pareceu-me que sim. Outra coisa que me pareceu igual foi aquela cortina de fios metálicos pendurados cuja utilidade não resisti a perguntar ao "homem do talho". "É por cósa das moscas", disse-me ele. E lembrei-me, então, que o senhor Luís também tinha uma coisa daquelas à entrada por causa das varejeiras. No tempo em que as clientes não sabiam bem que havia políticos malandros, corruptos, ricos e incompetentes.

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6 Comments:

At 2:53 da tarde, Blogger Teófilo M. disse...

Ó espumante, grande naco de prosa, e ainda por cima certinha comó carago, como se diz cá por cima.

Conclusão a tirar?

Antigamente as queixas faziam-se em voz mais baixa, e não eram no talho ;-)

 
At 9:44 da manhã, Blogger Carlota disse...

Muito bem.
E o bife?

 
At 3:41 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Teófilo M.

Ou isso...
:)

 
At 3:43 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Carlota

Não duvidas que saíu um bife gostoso, grelhado ao ponto, bem temperado e com as quadrículas da grelha, pois não?
:)))

 
At 5:01 da tarde, Blogger Sinapse disse...

Bela posta!!

Eu adorava ir ao talho com a minha Avó. Longínqua infância!

Se eu não estivesse tão cansada da directa que fiz de Las Vegas para JFK-táxi-escritório, escrevinhava agora um post nostálgico sobre as idas ao talho com a minha Avó.

Beijinhos ... pois, nostálgicos!
Sinapse

 
At 3:56 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Sinapse

Mas não era mirandesa :)))
De resto, tenho uma pena do teu cansaço que nem fazes ideia...
Beijinhos invejosos

 

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