quarta-feira, setembro 14, 2005

Valha S. Jorge à Rua de S. Paulo



[559]

Eu sei que dizer que Lisboa está uma cidade feia, porca e, frequentemente, má, começa a ser um lugar tão comum como o José Sócrates ralhar com as pessoas na televisão.

Mas há alturas em que dificilmente podemos calar a vergonha, a tristeza de termos a capital que temos. Hoje, por razões logísticas, deixei o carro em casa e apanhei o comboio para o Cais do Sodré onde, obedecendo à pontinha de romantismo alfacinha que existe em mim, resolvi tomar um café e apanhar o eléctrico para o local de trabalho, considerando que o eléctrico pára à porta do escritório. E é assim que me meto pela rua de S. Paulo que é onde o eléctrico passa, a caminho dos Prazeres. E é aqui que a odisseia começa. Entre vários locais em obras, carrinhas estacionadas a carregar e a descarregar, contentores monstruosos com entulho das obras, betoneiras e umas pequenas escavadoras de lagartas lá descobri um "café-pastelaria". Entro e peço uma bica a um fulano gordo, suado e sebento. Barba de vários dias e um avental imundo. O homem serve-me o café, não parando de discutir o descalabro do Benfica de há dias, sem sequer olhar para mim. Café queimado, em chávena a escaldar com um pacote de açúcar atirado para cima do balcão. Vendo que mal conseguia tocar com os lábios na chávena, pedi ao homem gordo e sebento que me mudasse o café para uma chávena fria. Sem parar de discutir a expulsão de Ricardo Rocha e a reputação da mãezinha de Koeman, e depois de vários "ofaxavor" em tom de súplica o homem concedeu-me um ar de soslaio para me dizer "mais fria"? "Mas olhe que toda a gente gosta assim".

Emudecido e quase aterrado pela ideia de me dar três coisas e emigrar, balbuciei um quase inaudível "chávena fria, fáxavor" e lá consegui ser atendido na minha "esquisita" pretensão. Saí da pastelaria (??…), o passeio estava limitado por uma protecção metálica, gente a trabalhar em cima, carrinhas a estacionar em baixo, poeira, muita poeira, gente das obras a gritar e lá percorri os cerca de 200 metros até à paragem do eléctrico. Duzentos metros pejados de "cafés-pastelarias", restaurantes, "comidas" e lojas de artigos eléctricos e electrodomésticos e até um "cash converter" (eu vi, estava lá escrito…) onde se vende, compra e troca quase tudo. Os vidros, embaciados de pó colado à humidade da noite, mal deixam ver o interior de muitas lojas pejadas de milhares de artigos diferentes e de descrição impossível. Desde santinhos em loiça, até chapéus de chuva. Potes, telemóveis, tecidos, chás medicinais, bonecos a dizer "I love you", estojos de unhas, tudo amontoado, tudo muito horrível e alegadamente muito barato e comprovadamente de um pirosismo atrós. Curiosamente, muitas dessas lojas estavam cheias de gente…entretanto, os restaurantes sucediam-se quase porta sim, porta não, muitos deles sem porta, tudo aberto, ao pó das obras e com as mesas já postas, mesas metálicas cobertas de toalhas de papel branco e algumas já com o pão (o couvert…) em cima.

Neste tudo ao molho e fé em Deus, aparece o eléctrico, ronceiro, 25- Prazeres, onde entro, compro um bilhete (€1,20) e me sento. A coisa piorou. Ao longo de toda a rua de S. Paulo, dificilmente o eléctrico percorreu mais de 30 metros, sem que tivesse de parar e esperar que os condutores de carrinhas, motoretas de carga, camiões (sim… camiões) estacionados na faixa da linha os retirassem para dar passagem ao eléctrico. Tudo gente a trabalhar, claro, fiquei a sabê-lo porque às tantas os passageiros já discutiam com os condutores e era isso, "que estavam a trabalhar", que os condutores diziam. Pelo meio havia polícias… ordenando (???) o trãnsito… já que apanhámos várias camionetas a fazer manobra de marcha atrás para descarregar materiais de obras. E o pó. O omnipresente pó. Tudo cheio de pó. Os carros, os vidros dos restaurantes, as lojas e tudo, mas tudo, ao pó. O pão, os guarda-chuvas, as frutas expostas (os "alpersses" e as "ameichuas", pelo menos era o que se via anunciado em bocados de cartão rasgado, com o preço), as pessoas, tudo era pó, algazarra e obras. Obras, obras e obras.

Não faltava um casal de turistas no eléctrico, com um mapa da cidade e olhando estupefactos para o que viam. Comentavam sobretudo a algazarra e aquele aparente "entendimento", cumplicidade entre as pessoas, em que toda a gente refila, mas toda a gente sabe que é assim e toda a gente se assume como parte integrante da confusão.

A partir de Santos, a coisa melhora um pouquinho. As obras continuam, mas há um pouco mais de espaço. As carrinhas param à mesma mas, frequentemente, dá para o eléctrico passar. Buenos Aires acima lá cheguei ao meu local de trabalho, perguntando-me por que carga de água a Lapa é tida como a zona nobre de Lisboa. Casas velhas, trânsito a monte, "até logo D. Arminda", obras, obras. Tudo a monte, tudo cheio de pó, tudo feio, tudo bimbo, muito bimbo, tudo horrível.

Logo, regresso de taxi para o Cais do Sodré. Como experiência romântica, bastou. Claro que me arrisco a apanhar um orangotango com barba de três dias a vociferar contra o trânsito e contra "estes f. da p. dos políticos que andam a encher os bolsos e querem é tacho", que a vida está impossível. Mas "prontes", pelo menos, como taxi, o homem sempre se pode desviar das carrinhas estacionadas sem ter que se limitar aos carris…

17 Comments:

At 5:29 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

A tua escrita é um espanto. Perante tão hedionda descrição, estou quase a achar Olivais-Sul City uma cidade dum qualquer país desenvolvido!!!
Beijinhos

 
At 6:21 da tarde, Blogger Torquato da Luz disse...

A descrição é deliciosa.
Ainda hoje de manhã fui a pé desde o Conde Barão ao Corpo Santo. Lisboa é assim. Mas gosto muito dela, não há nada a fazer...

 
At 8:06 da tarde, Blogger Formiga Rabiga disse...

Não resisto a dizer que todos os dias penso e afirmo que acho Lisboa lindíssima.
Pois tem estas coisas que a estragam um bocadinho mas não chegam para a tornar feia.

 
At 9:32 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

Tinha que lhe escrever ... não aguento a curiosidade!
Porque é que gosta assim tão pouco de mim?
Claro que nada o obriga a tal ... é óbvio. Mas, confesso, que adorava saber porquê:-)

 
At 10:34 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Laura Lara

Hoje fui acometido de alguma irritação com tanta balbúrdia, sim...
beijinho para ti :)

 
At 10:36 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

torquato da luz

Ainda há dias, num comentário que fiz a um poema seu sobre Lisboa, deixei bem marcado quanto amo esta cidade. Mas há dias em que tudo parece mal... em que tudo parece girar na permanente balbúrdia do nosso dia a dia.
Um abraço para si

 
At 10:46 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Formiga

Ó Formiga... eu "autorizo-te" a gostar tanto de Lisboa como eu. Mas mais... não. Aliás, há matéria abundante no "Espumadamente" sobre o amor que tenho à minha cidade. Ainda há dias me enterneci com o Jardim da Estrela e disso dei conta aqui. Provalmente não terás lido esse post, como muitos outros em que deixo tansparecer o gosto pela minha cidade. Remeto-te até para um comentário que fiz há dias num poema do Torquato da Luz no seu Ofício Diário. Mas isso não obsta a que eu reaja à porcaria, aos prédios decrépitos, à balbúrdia das obras, á confusão, aos chicos espertos e a um toque de ruralidade pimba que pode ficar muito bem num ermo qualquer mas não numa capital europeia. Sejamos coerentes: És capaz de citar uma cidade europeia tão feia de suja, decrépita e caótica como a tal Lisboa que tu e eu amamos?
Se conheceres, diz-me. Há uma que tem a aproximação - Atenas. Não me ocorre mais benhuma,.
Beijinho para ti e obrigado pelo teu comentário.

 
At 10:49 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Mariama
Não gosto de quem??? De si? Mas eu não conheço nenhuma Mariana... Está a referir-se a Lisboa, identificando-se com ela? Se é isso, os comentários anteriores explicam tudo. Se não é isso, se é mesmo de uma Mariana que eu não gosto, tem de me dizer quem é, porque não faço a mínima ideia...
Mas comente sempre. Nem que seja por curiosidade
:)

 
At 11:17 da tarde, Blogger Hipatia disse...

Muda-te para o Porto :PPP

(já só temos uma linha de eléctrico e o que anda pelo meio da rua chama-se "Metro de Superfície", eheheheh)

 
At 12:03 da manhã, Blogger Formiga Rabiga disse...

Olha, pois, o Porto é uma cidade mais "feia de suja, decrépita e caótica como a tal Lisboa" Madrid, de que eu tanto gosto também tem por lá uns recantos assim, Barcelona que é a minha segunda cidade do coração, o mesmo e olha que deve haver muitas mais. Não conheço bem assim às dúzias cidades europeias mas como a nossa ou pioores deve haver muitas.
E mais, eu leio o que escreves e entendo essa paixão ali pela Estrela. Não comento muitas vezes mas leio todos os dias! Certo?
E há uma outra Lisboa que não vejo aqui comentada e é linda!

 
At 12:09 da manhã, Blogger Hipatia disse...

Não venho aqui meter-me com ninguém :) Só venho mesmo deixar o link para que todos possam ver como a cidade património da humanidade é LINDA.

http://cidadesurpreendente.blogspot.com/

 
At 6:50 da manhã, Blogger Passada disse...

Depois de aqui ler todos os comentários continuo a ver uma atitude inegavél do luso - a incapacidade de autocrítica. Pelo que percebi em momento algum te escapa o amor que tens por essa cidade (eu também de longe...)apenas mostras uma realidade latente, está lá (escapou-te as cuspidelas)e ninguém gosta de assumir que a nossa própria casa é suja, pouco sofisticada, ordenada e com espaços urbanos dignos. Joanesburgo, aliás África do Sul com um provavel maior atraso sempre mostrou uma excelente arrumação citadina (até demais) nos espaços verdes, nas estradas. Essa resignação de passar ao lado do que é imundo, essa passividade que me impressiona. Mas tens sim cidades europeias bem sujas como Roma, até Paris e depois vamos mais para o Leste. Beijos paralelipípedos! :)

 
At 8:10 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Hipatia

Pró Porto... só quando o Pinto da Costa tiver uma dor de barriga, o Nuno cardoso emigrar para o Butão, o Valentim tiver uma situação de desibteria crónica e o Narciso mirnada tiver caspa recorrente na barba de duas em duas semanas. :)))
Ahhh... e quando deixarem de me chamar murcão, cada vez que cruxo a rotunda da Boavista e quizer virar para a baixa!
:))
Beijihnos para a "gaija do Norte" :))

 
At 8:18 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Formiga

Parece que no essencial estamos de acordo. E não gosto SÓ do Jardim da Estrela. Gosto de toda a Lisboa, sem embargo do que disse no post. E quanto às dúzias de cidades europeias que tu e eu NÃO conhecemos, conhecemos pelo menos as suficientes para sabermos que em matérias de pó e caos de trânsito e obras e cafés-pastelarias do tipo das que citei não há paralelo. Quanto ao Porto, concordo contigo, acho até que é um pouco pior que Lisboa, mas isto digo baixinho para a Hipatia não se zangar :))
Finalmente, a outra Lisboa que gostarias de ver aqui comentada, o sentido do post era dizer mal e não dizer bem. "Ele há dias", Formiga, há dias em que só apetece dizer mal. Mas sobre isso, parece-me que não sou filho único na desgraça de, aqui e ali, ter de dizer mal de alguma coisa, não é?
Fico satisfeito por leres o Espumadamente todos os dias. Eu também leio o Formiga todos os dias e gosto.
Beijinho formigal para ti :)

 
At 8:22 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

mmicr

Não é verdade, Passada. Por acaso a autocrítica é comum aqui pela paróquia. E a crítica é, mesmo um desporto nacional :)))
Quanto a Johannesburg, as realidades são diferente. Jiohannesburg tem pouco mais de 100 anos e foi desenhada já sob padrões urbanísticos diferents. sem embrgo da "cultura de organização e rigor" estar, naturalmente, a anos-luz dest velhinha Lisboa.
beijinhos "para os dois" :))))

 
At 8:25 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Hipatia
Reparei que deixaste outro comentário.
Eu leio todos os dias o Cidade Surpreendente e concordo contigo. O "Cidade" é um dos melhores blogs temáticos, com fotos assombrosas. Magníficas. Aliás, se reparares (mas tu és muito distraída... :))) ) até o tenho lincado,. Mas isso não implica que o Porto seja também uma cidade feia, suja e caótica, onde tem de ser.
beijos sulistas para a "gaija do norte" :)))

 
At 1:03 da tarde, Blogger Passada disse...

Oh Espumante, lá estás tu. E a velhinha Lisboa não teve tempo ainda de melhorar um pouco essa postura? Será que sabe o que tem?
Beijos

 

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